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sábado, 10 de julho de 2010

O rebelde

Nos dias atuais ter o exemplo de marido em casa é algo que pode ser considerada uma verdadeira façanha, especialmente quando falamos de um casal de professores aposentados. Sabe aqueles velhinhos que você olha para carinha deles e simplesmente pensa: “Puxa, poderiam ser meus avós!?!”

Pois é, os nossos avós neste caso são Leonildo e Divina. Já passaram da casa dos 70, mas esbanjam uma vitalidade que muito meninote de 25 custa para envergar no peito.

Os dois moram em Botucatu, cidade quase pacata do interior de São Paulo, cortada pela imponente SP 300, a rodovia Marechal Cândido Rondon. Leonildo, professor aposentado é daqueles senhores que gosta de bater papo com todo mundo, seus filhos costumam dizer que ele “fala mais que o homem da cobra”, mas é assim mesmo, professor mudo não pode ensinar nada para ninguém, né não?

Já Divina é uma mulher, digamos, de personalidade forte, opiniões contundentes, às vezes são bem reacionárias, assustam as pessoas, mas de uma hora para outra esses seus devaneios se transformam em comunistas, um verdadeiro “samba do crioulo doido” que deixa qualquer um assustado e perguntando: “Mas essa é a Divina que a gente conhece?”

Leonildo não gosta muito de levar Divina para a cidade, depois de anos morando na zona urbana de Botucatu, Leonildo como um marido exemplar, resolveu atender os pedidos da esposa e foi morar na chacrinha que comprou no Recreio Vista Alegre. Aliás, não existe um nome mais bonito para um condomínio de chácaras do que Vista e ainda por cima Alegre...

Morando em contato com a natureza, a vida de Leonildo mudou um bocadinho, pois quando estava na cidade era sempre apto para um bom papo na praça com os amigos, no banco ou mesmo na loja do filho onde muitos conhecidos sempre procuravam as mais diversas soluções no setor da informática. Leonildo, mesmo sem cargo, era uma espécie de “gerente de relações públicas”, afinal sempre que podia (e ele podia bastante) estava na loja ou perambulando pela região para bater um papo com seus conterrâneos.
- Divina, vou até a cidade, venho para o almoço.

E lá se vai Leonildo montado no seu cavalo branco, como um príncipe encantado, como dizia sua esposa, para mais uma epopéia para chegar até a cidade. O duro é que às vezes a bóia ficava na mesa e Leonildo não vinha no horário certo, o que deixava sua mulher sacrossantamente irritada.

Divina se referia às idas de Leonildo para a cidade como epopéias porque o doce aposentado sempre tinha que cruzar a Marechal Rondon por pouco mais de 2 quilomêtros para desembocar no perímetro urbano de sua cidade.

Com seu indefectível Ray Ban, ao melhor estilo motorista da Viação Cometa, Leonildo passava diariamente pela SP 300 e fazia sempre o mesmo comentário: “Esse guarda que fica na base dorme o dia todo!”

O olhar de lince de professor sempre captava a figura do guarda que estava mirando para o infinito enquanto ele cortava a pista. Leonildo que já morava em sua chácara há mais de 10 anos nunca havia sido parado numa dessas fiscalizações de rotinas e duvidava que isso iria acontecer.

Mas o diabo em tudo é que a primeira vez é realmente como aquele ditado: você jamais se esquece.

O cenário é à noite, lua clara, estrelas no céu, Leonildo e Divina voltando com seu bravo Fiat Palio para mais uma feliz noite no não menos feliz Recreio Vista Alegre. Habituado a dormir cedo, Leonildo segurava o sono na raça e vinha conversando sobre a vida, os filhos, a igreja onde são ministros da eucaristia e o genro, um mal humorado dos diabos que acabou se engraçando com a filhinha querida deles.

- Ah, é um mal humorado esse meu genro!
- É Leonildo, o bicho é encrenqueiro, boca dura e às vezes fala umas coisas que me assusta, mas nossa filha gosta dele!
- Tá louco, essa menina poderia ter escolhido outro. Com tanto partido bom por aí...
- Opa, Leonildo! O guarda está dando luz para você. É isso mesmo. Olha, piscou de novo! Você terá que encostar!

Encostar? O quê? Foram frações de segundos: o rosto do pacato Leonildo, o marido perfeito, o avô que você queria para os seus netos se transformou no Belzebu chupando duas mangas.

- Por que vou parar?
- Tá louco, homem de Deus! Para, logo! É fiscalização! É rápido.
- Parar nada, ninguém para neste lugar!

O pensamento de Leonildo foi longe. A coragem encheu seu peito, justo ele que prefere pagar uma conta duas vezes ao invés de entrar numa pendenga, ele que sempre procura o caminho da reconciliação, estava tendo o seu “Dia de Fúria”, o seu dia de Michael Douglas. Só faltou a espingarda...

Ao observar a luz do patrulheiro rodoviário mandando que encostasse para uma fiscalização, Leonildo numa manobra mais do que ousada subiu no canteiro central da estrada e resolveu voltar para a cidade. O guarda ao observar o Palio atravessando o canteiro da Rondon que já estava quase deserta naquela hora derrubou até a lanterna no chão.

Divina segurava o terço que estava no retrovisor do carro de Leonildo e invocava toda a milícia celeste naquele momento de rara tensão e ousadia do marido, afinal ele estava enfrentando o Estado, a Força Pública, a Lei, oras bolas, a Polícia!

Rapidamente, o guarda rodoviário retomou a lanterna, deu uma nova focada e viu o Palio se esforçando para ganhar mão contrária à da base. Como um raio, ele entrou na viatura cortou pela passagem exclusiva dos policiais e saiu em perseguição a Leonildo e sua esposa.

Em pouco tempo, Aureliano estava na cola do casal e a sirene comendo quente. Divina insistia que Leonildo parasse, mas ele acelerou ainda mais, era o seu momento de mostrar que também podia protestar contra a falha fiscalização da estrada, contra as cochiladas de outros patrulheiros quando ele passava por ali em suas manhãs de idas ao centro de Botucatu.

Mas a prudência pedia: Leonildo resolveu encostar. Eram as preces de Divina sendo atendidas. Graças a Deus! Aureliano grudou atrás do Pálio, ascendeu o refletor, tirou a arma do coldre e caminhou até o carro.

Quando Iluminou o lugar a sua curiosidade se transformou em susto:

- Professor Leonildo? O senhor por aqui? Que história é essa de fugir da polícia?
- Fujo mesmo! E você, Aureliano, aprendeu onde fica o norte, o sul, o leste e o oeste para ser Polícia Rodoviária? Era ruim que dói na escola, dava até medo! E agora quer me dar lição de moral, vai te catar!
- Olha, professor! Num fala isso, aquela prova em que o senhor me deu zero foi injustiça, eu disse ao senhor que tive uma gripe daquelas!
- Gripe? Que gripe, nada! Me contaram que no dia anterior você tava naquele inferninho, o Raio de Sol, que ficava lá em cima, perto da Vila Maria, por isso que não sabia nada, não tinha estudado!
- Ô professor, o caso aqui é o senhor fugindo da polícia, não importa em que inferninho eu fiquei naquela prova, depois passei de ano, na pendura, mas passei.
- O senhor sabia que eu já tava pronto para furar o pneu do seu carro com um tiro? Por que fugiu de mim? Eu sou a lei!

Franzindo a testa, Leonildo simplesmente retrucou com raiva:

- Lei? Mas que lei você representa? A lei do sono? Toda vez que passo aqui tem um guarda dormindo, bocejando, até jogando mini-game eu já vi! E quando tem jogo, então? Os caras pulam quando sai gol!

Anotando a chapa e lavrando a multa, Aureliano disse que faria Leonildo pagar apenas por excesso de velocidade, que não iria considerar o desacato em nome dos velhos tempos, mas que precisaria da assinatura de Leonildo no bloco de multas.

- Eu não assino nada! Aqui só tem pedágio caro! Agora, colocaram um entre São Manoel e Botucatu. Que vergonha!

De soslaio, o patrulheiro ofereceu o bloco para Divina que balançando a cabeça disse que não poderia desrespeitar o marido. Casal unido é multado unido.

Aureliano rasgou a multa do bloco, jogou no colo de Leonildo e disse um boa noite daqueles, tipo: “Vai pra casa e não me cause mais problemas!”

Leonildo resolveu fazer o retorno e enquanto chegava em casa para finalizar mais um dia, acabou ouvindo de sua amada e quase infalível esposa:

- Pois é marido, para tanta coisa você é pacato. O que deu em você agora para enfrentar até a polícia!

A carequinha de Leonildo ficou tão vermelha quanto pimenta malagueta, o semblante da fuga de momentos antes voltou à sua face e na lata ele respondeu:

- Estava vivendo intensamente! Recordando meus tempos da militância de esquerda!

No outro dia, Leonildo passou novamente em frente à base. Quem dormia no posto de vigia desta vez? Não dava para ver, a persiana estava abaixada. A Polícia Rodoviária é prudente.

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